O projeto foi aprovado pela CCJ da Assembleia Legislativa mesmo interferindo em uma questão federal
O diretor-geral da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), Cristiano Lobato Flôres, o presidente da Midiacom-MS (Associação de Emissoras de Rádio e Televisão de Mato Grosso do Sul), Antônio Alves, o Tunico, e a especialista em radiodifusão e telecomunicações, advogada Adalzira França Soares de Lucca, classificaram de inconstitucional o Projeto de Lei nº 69/2024, de autoria do deputado estadual Pedro Caravina (PSDB), que institui em âmbito estadual ações de incentivo ao serviço de radiodifusão comunitária.
Representante da Abert, Cristiano Lobato disse que, no Brasil, em matéria de radiodifusão, a imposição de restrições, obrigações ou incentivos dá-se por meio da própria Constituição Federal, pela legislação federal ou, ainda, mediante lei estadual, desde que previamente autorizado por Lei Complementar.
“O projeto de lei em questão é, portanto, inconstitucional, pois não há lei complementar que autorize o Estado do Mato Grosso do Sul a legislar em matéria de radiodifusão. Ele também é ilegal, pois a Lei Federal nº 9.612, de 1998, e o Decreto nº 2615/98, que criam e regulamentam, respectivamente, o serviço de radiodifusão comunitária, preveem que a única forma de apoio permitida é o patrocínio, sob a forma de apoio cultural para os programas a serem transmitidos, desde que restritos aos estabelecimentos situados na área da comunidade atendida. Por estabelecimentos, entende-se as pessoas jurídicas de direito privado, jamais o Poder Público”, detalhou o diretor-geral da Abert.
Ele completou que isso tem uma razão: o financiamento público contraria os objetivos e os princípios constitucionais que norteiam as rádios comunitárias, de pequena dimensão e de baixa potência, criadas por associações e fundações justamente com a missão de informar e atender determinada comunidade local. “E justamente dela é que deve vir sua fonte de custeio”, pontuou.
Midiacom MS
Presidente da Midiacom-MS, que foi fundada em 15 de março de 1999 pelo setor privado para defender os interesses das empresas de radiodifusão de Mato Grosso do Sul, Tunico reforçou que a Lei Federal nº 9.612/98, que regula as atividades das rádios comunitárias, veda expressamente qualquer forma de financiamento público que possa comprometer a independência dessas emissoras.
“Este dispositivo legal é claro ao proibir que rádios comunitárias sejam subordinadas a interesses políticos, religiosos ou comerciais, sob pena de desvirtuar sua finalidade essencial”, argumentou.
Ele acrescentou que esse projeto de lei é flagrantemente ilegal na medida em que o financiamento público desvirtua as finalidades e os princípios constitucionais que norteiam as rádios comunitárias.
“Isso está regido pela Constituição Federal e, portanto, o projeto de lei não pode ir adiante. Tem toda uma legislação e quem pode falar sobre isso é a Constituição Federal, já existem pareceres que questionam isso. Nós, os radiodifusores, somos totalmente contra por ser algo inconstitucional que vai prejudicar todo o mercado”, assegurou.
Tunico repetiu que a contratação e remuneração de rádio comunitária para veiculação de anúncios, transmissão de sessões por município e Estado é ilegal, sendo que o gestor público está sujeito à responsabilização sobre esses atos.
Especialista
Já Adalzira de Lucca, que é sócia e administradora da sociedade de advogados Azevedo, Barbosa & De Lucca Advogados, sediada em Brasília (DF), completou que o projeto de lei de Pedro Caravina é extremamente subjetivo.
“Então, dentro dessa subjetividade, cabe qualquer coisa. Lendo assim, em princípio, a gente poderia dizer que o projeto não é inconstitucional porque ele não regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária. Ele institui ações de incentivo à radiodifusão comunitária”, declarou.
No entanto, continuou a especialista, se ler o projeto combinado com a lei de radiodifusão comunitária, a Lei 9.612, e com a Constituição, Artigos 21 e 22, pode se dizer que o projeto é inconstitucional porque a Constituição reforça que compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens.
“Aí dentro desse serviço de radiodifusão sonora, encontra-se o serviço de radiodifusão comunitária, que é um serviço de radiodifusão sonora. E compete privativamente à União, é competência privativa da União legislar sobre radiodifusão. Então, qualquer tentativa de legislar sobre radiodifusão é considerada inconstitucional”, alertou.
Por outro lado, conforme Adalzira de Lucca, a lei estadual diz que o Estado dará apoio à manutenção e desenvolvimento de projetos continuados realizados pela radiodifusão. “Ele vai adotar medidas de fortalecimento do serviço de radiodifusão, difusão de cultura local, veja bem, de cultura local por meio da radiodifusão comunitária e promoção da liberdade de expressão, informação e comunicação, que era até dispensável esse inciso, pois já está garantido pela Constituição”, pontuou.
A advogada ressaltou que isso pode vir a contrariar, dependendo da forma como for aplicado, o Artigo 3º e 4º do Serviço Radiodifusão Comunitária, que é um serviço criado para dar oportunidade de fusão de ideias da comunidade. “Ele não pode ter nenhuma restrição, nem de religião, nem de sexo, nem de cor, nem de cultura, ideologia, política, nada. Ele tem que ser um serviço que respeita os valores éticos e sociais da comunidade como um todo. Não pode haver nenhum tipo de discriminação. E esse apoio à manutenção de projetos pode beneficiar um projeto em detrimento de outros. Enfim, considero, lendo esse projeto e como especialista na área, que é inconstitucional”, garantiu.
Adalzira de Lucca acrescentou ainda que, primeiro, a legislação de serviço de radiodifusão, seja sobre o que for, é competência privativa da União. “Tudo aquilo sobre radiodifusão, inclusive, é competência privativa da União, quando ela delega a execução de serviço, dizer as regras sobre as quais ele será executado. Não cabe ao Estado ficar ingerindo isso. Tem gerência sobre isso e quem vai dizer como é que o serviço será feito, será executado, quais são as regras que ele tem que obedecer, quais são os projetos que ele tem que divulgar, é a União, que é competente também, originariamente, para executar a execução do serviço”, lembrou.
A advogada relatou também que a União é competente não só para executar, como para legislar sobre. “Então, não cabe ao Estado, de forma nenhuma, dizer que vai dar apoio a desenvolvimento de projetos, promover cultura local, isso é o que ela pode fazer sem estar em um projeto de lei. O fato de as emissoras estarem localizadas nos estados não transfere para o Estado a competência sobre o serviço, que constitucionalmente é competência da União. Então, quem tem que dispor das regras sobre o serviço é a União”, afirmou.
Pedido de vista
O deputado estadual Lucas de Lima (PDT), que é radialista, solicitou vistas, provocando o adiamento para proporcionar mais tempo para discutir possíveis emendas com representantes e especialistas da Midiacom-MS. “A ideia é usar esse tempo para dialogar sobre como podemos melhorar o projeto”, completou o parlamentar.
O projeto foi aprovado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, mas enfrenta questionamentos quanto à sua validade legal. A Constituição Federal, em seu Artigo 21, inciso XII, determina que a competência para legislar sobre serviços de radiodifusão é da União, portanto, a tentativa de regular esse setor a nível estadual é considerada inconstitucional.
Lucas de Lima explicou que a questão da inconstitucionalidade já foi debatida e aprovada na CCJ, o que impede novos questionamentos sobre esse aspecto no âmbito da Assembleia Legislativa. No entanto, ele sugeriu que a entidade considere uma ação judicial para contestar a constitucionalidade do projeto.
Em todos os municípios onde há rádios comunitárias, também existem rádios comerciais e educativas, além de outros veículos de comunicação. Portanto, a alegação de que as rádios comunitárias são a única forma de comunicação nesses locais não se sustenta.
O projeto deve ser devolvido para votação na próxima semana. Durante esse período, será possível discutir e propor emendas que possam ser incorporadas ao texto, garantindo que ele esteja em conformidade com a Constituição. Representantes da entidade, especialistas jurídicos e membros da comunidade são incentivados a participar dessas discussões.
Foto de capa: Aline Kraemer